sexta-feira, abril 19, 2013

Abril 19, 1506

“Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo." George Santayana.


Em abril de 1506 a seca e sobretudo a peste tinham afastado de Lisboa muitos dos que possuíam meios para poder deixar a cidade. O rei D.Manuel também tinha saído e dirigia-se a Beja para visitar a mãe.

Foi neste ambiente de desespero e abandono que nos dias 19, 20 e 21 desse mês foram massacrados em Lisboa cerca de quatro mil cristãos-novos, designação dada aos judeus dos séculos 15 e 16 convertidos ao catolicismo, por convicção ou medo.


Os judeus, uma vez mais, foram tomados como bode expiatório dos males do mundo, prática que teve os seus primórdios ainda na Roma antiga, quando as comunidades judias começaram a ser perseguidas e massacradas por lhes serem imputadas as desgraças da natureza ou outras.

Em seguida são transcritos dois relatos coevos (em caso de dúvida sobre a ortografia da época, consulte a nota auxiliar no fim desta página.)


Na "Miscellania & Variedades de Historias, Costumes, Casos & Cousas que em seu tempo aconteceram", escrito entre 1530 e 1533 por Garcia de Resende, o relato dos acontecimentos aparece em forma de poema:
Vi qẽ em Lixboa se alçaram / Pouo baixo & villãos / Contra os nouos Christãos / Mais de quatro mil matarão / Dos qẽ ouuerão nas mãos. / Hũos delles viuos queimarão / Mininos espedaçarão / Fizerão grandes cruezas / Grandes roubos & vilezas / Em todos quantos acharão.
Estando só ha cidade / Por morrerem muito nella / Se fez esta crueldade / Mas el rey mandou sobrella / Cõ muy grande breuidade / Muitos forão justiçados / Quantos acharão culpados / homẽs baixos & bragantes / & dous frades observãtes / vimos por isso queimados.

Na Chronica do Felicissimo Rey D. Emanuel da Gloriosa Memoria, Damião de Góis relata os acontecimentos desta maneira:
Nestes dous capitulos que sam os derradeiros desta primeira parte [os capítulos 102 e 103 da 1a parte da Crónica] trattarei de hũ tumulto, & alevantamento, que se aos xix dias Dabril [19 de abril] destanno [deste ano] de M.d.vi,  em domingo de Pascoella fez em Lisboa contra os Christãos nouos, que foi pela maneira seguinte.
No mosteiro de sam Domingos da dita Çidade está hũa capella a que chamam de Iesu [Jesus], e nella um Cruçifixo, em que foi entam visto hum sinal, a que davam cor de milagre, com quanto os que na egreja se achavam julgauam ser o contrairo, dos quaes hũ Christão novo dixe que q lhe parecia hũa candea acesa que estava posta no lado da imagem de Iesu, ho que ouuindo algũs homẽs baixos ho tiraram pelos cabellos arrasto fora da egreja e ho mattaram, & queimaram logo ho corpo no resio [Rossio].
A ho qual alvoroço acodio muito pouo, a quem hum frade fez hũa pregação conuocandoho cõtra hos christãos nouos, apos ho que saíram dous frades do mosteiro, com hum Cruçifixo nas mãos bradando, heresia, heresia, o que imprimiu tanto em muita gente estrangeira, popular, marinheiros q entam vieram da Holãda, Zelanda, Hoestelãda [Alemanha], e outras partes, assi homẽs da terra, da mesma condiçam e pouca calidade que jũtos mais de quinhentos começaram a mattar todolos christãos nouos que achauam pelas ruas, e hos corpos mortos, & meos viuos lançauão, & queimauam em fogueiras que tinham feitas na ribeira [do Tejo], & no resio [Rossio], a ho ql [qual] negoçio lhes seruião escravos, & moços, que cõ muita diligençia acarretauam lenha. & outros materiaes pera açender o fogo, no qual domingo de Pascoella mataram mais de quinhentas pessoas.
A esta turma de maos homẽs, & dos frades, que sem temor de Deos andauam pelas ruas concitando o pouo a esta tamanha crueldade, se ajuntaram mais de mil homẽs da terra, da calidade dos outros, que todos juntos à segunda feira continuaram nesta maldade com mór [maior] crueza, & por ja nas ruas nam acharem nenhũs, foram cometter com vaivẽs, e escadas [foram assaltar], has casas em que viuiam, ou onde sabiam que estauam, & tirandohos dellas arrasto pelas ruas, cõ seos filhos, molheres, & filhas, hos lançauam de mistura viuos, & mortos nas fogueiras, sem nenhũa piedade, & era tanta a crueza q atte nos mininos, e nas crianças que estauão no breço ha executauam, tomandohos pelas pernas, fendendohos ẽ pedaços, & esborrachandohos darremeso [de arremesso] nas paredes.
Nas quaes cruezas se nam esqueciam de lhes metter a saque has casas, & roubar todo ho ouro, prata, e enxovaes que nellas achavam, indo o negoçio a tanta dissoluçam que das egrejas tiravã muitos homẽs, molheres, moços, moças, destes innoçentes, desapegandohos dos Sacrarios, & das imagẽs de nosso Senhor, & nossa Senhora, & outros Sanctos, com que ho medo da morte hos tinha abraçados, & queimando misticamente [fanaticamente] sem nenhũ temor de Deos assi a ellas quomo a elles.
Neste dia [segunda-feira] pereceram mais de mil almas sem haver na çidade quem ousasse de resistir pola pouca gẽte de forte que nella hauia, por estarem hos mais dos horados fora, por caso da peste. E se os alcaides, & outras justiças queriam acodir a tamanho mal, achavam tãta resistẽcia, que eram forçados a recolher a parte onde estivessem seguros, de lhes nam acontecer ho mesmo que ahos christãos nouos
Hauia antre os Portugueses, q andavam encarniçados neste tão feo, & inhumano tratto, taes, que por se vingarem do odio, & mal querẽça q tinham cõ algũs Christãos lindos [os que não eram cristãos novos], davam a entender ahos estrangeiros que eram Christãos nouos, & nas ruas, ou ẽ suas casas onde os iham saltear os mattauam, sem ẽ tamanha desavẽtura se poder poer [pôr] ordẽ.
Passado este dia, que era o segũdo, desta perseguição, tornaram à terça feira estes dãnados  homẽs a pseguir em sua crueza, mas nam tãto quomo nos outros dias, porque ja nã achauam quẽ mattar, por todolos Christãos nouos q escaparam dessa tamanha fúria, serẽ postos em saluo, por pessoas hõrradas, & piadosas q nisso trabalharam tudo ho q nelles foi, & o tẽpo, & desordem delle lhes pode cõçeder , sem poderẽ euitar q não perecesem neste tumulto mais de mil e noueçẽtas almas, q tãto se achou per cõta q mattaram estes maos e perversos homẽs, no q passarão a mór parte daquelle dia no ql à tarde acodirão á çidade Aires da sylva Regedor, e dom Aluvaro Castro gouernador, com ha gente q puderam ajuntar de suas valias, sendo ja quasi acabado, e paçifico o furor desta gente, cansada de mattar, & desesperada de poder fazer mais roubos, dos que ja tinham feitos.
Esta noua derão a elRei na villa de Auiz, indo Dabrantes [de Abrantes] visitar ha Infante donna Beatriz sua mãi, q estava em Beja, de que foi muito triste, & anojado, pelo que, pera se prover em tamanha desordem, logo dalli mãdou ho Prior do Crato, & dom Diogo lobo, baram Daluito [barão de Alvito] com poderes, pera castigar os que achassẽ culpados, dos quaes muitos foram presos, & enforcados p justiça, principalmente dos naturaes [portugueses], porque os estrangeiros cõ hos roubos, & despojo que leuauam se acolheram a suas naos, & se foram nellas cada hũ pera dõde era.
Aos dous frades, que andáram com ho Cruçifixo pela çidade tiraram as ordẽs e per sentẽça foram queimados. E elRei mãdou por seu procurador cõtra os da çidade, & termo [arredores], & officiaes della de que muitos perderam os officios, & has fazendas [propriedades], & cõtra ha çidade, & termo foi dada sentença, ha qual me pereçeo de substançia pera se poer de verbo a verbo no capitulo seguinte.
Capitu.ciii. em que se relata a sentença que se sobreste descalabrado caso deu cõtra ha çidade de Lisboa & seu termo, & o mais que elRey sobre isso fez.
Sabida por elRey a vnião que se fezera ẽ Lisboa determinou de dar logo sobrisso [sobre isso] castigo ahos culpados polo que em chegando a Beja se despedio cõ brevidade da infante donna Beatriz sua mai, que de ahi a pouquos dias faleçeo na mesma çidade, & se veo a Evora pera alli sperar recado, & çerteza do que de passava em Lisboa, ho que sabido, por a çidade ainda estar impedida de peste se veo a Setuual (Setuval/Setúbal) pera de mais perto, & com mor breuidade prouer neste caso, dõde por informações que teve de Aires da sylva Regedor da casa da Supplicaçam, e dõ Alvaro de castro Gouernador da casa do çivel de Lisboa, neste caso vsaram, & assi os vereadores, lhes estranhou per suas cartas a todos ho erro que hũ tal, & tam grande negocio cometteram, sobelo que elRey logo mãdou proçeder, & se deu hũa sentença de que ho theor he ho seguinte.
Dõ Emanuel pela graça de Deos Rei de Portugal, &c [etc]. Fazemos saber que oulhãdonos [olhando aos] muitos insultos & dãnos que em ha nossa çidade de Lisboa, & seus termos foram comettidos, & feitos de muitas mortes de christãos novos, & queimamento de suas pessoas, & assi outros muitos males sem temor de nossas justiças, nem reçeo das penas em que comettendo hos taes maleficios encorriam nam esguardando quanto era cõtra serviço de Deos, & nosso, & contra o bem, & assossego da dita çidade, visto quomo a culpa de tão inormes damnos, & maleficios, nam tam somente carregava sobre aquelles que ho fezeram, & cometteram, mas carrega isso mesmo muita parte sobre os outros moradores, & pouo da dita çidade, & termo della, em q os ditos maleficios foram feitos, porque os que na dita çidade, & lugares estavam se nam ajuntaram com muita diligencia, & cuidado com nossas justiças, pera resistirẽ ahos ditos malfeitores, ho mal, & damno que assi andauam fazendo, & hos prenderem pera assi haverem aquelles castigos que por tam grande desobediençia as nossa justiças mereçiam, & que todolos moradores da dita çidade, & lugares do termo em que foram feitos deueram, & eram obrigados fazer, & por ho assi nam fazerem, & hos ditos malfeitores nã acharem quem lho impedisse, creçeo mais a ousadia, & foi causa de muito mal se fazer, & ainda algũs deixauam andar seus criados, filhos, & servos nos tais ajuntamẽtos sem disso os tirarem, & castigarem como theudos [merecedores] eram,
E porque has taes cousas nam devẽ passar sem grave puniçam, & castigo, segundo a diferença, & calidade das culpas de hũs, & outros nisso tem. Determinamos, & mandamos sobre ello com o pareçer de algũs do nosso conselho, & desembargo, que todas, & quaesquer pessoas, assi dos moradores da dita çidade, quomo de fora della que forem culpados em has ditas mortes, & roubos, assi hos q per fim mattaram, & roubarão, quomo hos q pera as ditas mortes, & roubos deram ajuda, ou cõselho, allẽ das culpas corporaes, q por suas culpas mereçem, percão todos seus bẽs, & fazendas assi movẽs como de raiz [propriedades móveis e imóveis], & lhe sejão todos confiscados pera coroa dos nossos Regnos, & todolos outros moradores, & pouos da dita çidade, & termos della, onde os taes maleficios foram comettidos que na dita çidade, & nos taes lugares presentes eram, & em os ditos ajuntamentos, nam andaram, nem ajudaram a cometter nenhum dos ditos meleficios, nem deram a isso ajuda, nem fauor, & porem foram remissos & negligentes em nam resistirem ahos ditos malfeitores, nem se ajuntaram com suas armas cõ nossas justilças, & poerem [porem] suas forças pera contrariarem hos ditos males, & damnos, quomo se fazer deuera, percão pera nos a quita parte de todos seus bẽs, & fazendas, movẽs, & de raiz, posto q suas molheres ẽ ellas parte tenhão, ha qual quinta parte sera tambẽ confiscada pera Coroa de nossos Regnos.
Outrosi [também] determinamos, & heuemos por bẽ (visto ho que dito eh) que da publicaçam desta em diante nam haja mais na dita çidade a eleiçam dos vintequatro dos mesteres, nẽ isso mesmo hos quatro procuradores deles, que na camara da dita çidade sohiam destar [costumavam estar] pera entenderem no regimento, & segurança della, cõ hos vereadores da dita çidade, & hos nam haja mais, nem estem [estejam] na dita camara, sem embargo de quaesquer privilegios, ou sentenças que tenham pera ho poderem fazer, & bem assi polas cousas sobreditas deuassamos enquanto nossa merce for ho pouo da dita çidade, pera apousentarem com eles, quomo se faz geralmẽte em todolos lugares de nossos reggnos, ficando porem a renda da imposiçam pera se arrecadar, quomo atte agora se faz, per officiaes que nós pera isso ordenamos, pera fazermos della ho que houvermos por bẽ,  nosso serviço.
Porem mandamos aho nosso corregedor da dita çidade, & a todolos outros corregedores, juízes e justiças a que pertencer, & ahos vereadores da dita çidade, & aho nosso apousentador mór, que assi ho cumpram, & guardem em todo sem duuida, nem embargo que a isso ponhão, porque assi he nossa merçe.
Dada em Setuual a xxij dias de Maio de M.d.vi. [Setúbal, 22maio1506].



Uma outra versão coeva do inicio dos acontecimentos, a do judeu Salomão ibn Verga, que pode ser lida aqui.


Em 2008 foi inaugurado em Lisboa um memorial às vitimas do massacre 1506. O monumento situa-se frente à igreja em que os trágicos acontecimentos tiveram início, no largo de São Domingos.



Nota auxiliar sobre a ortografia do Português do início do século 16

Quem não conheça as caraterísticas da ortografia anterior ao século 17 pode ter alguma dificuldade no entendimento do texto, designadamente nos casos seguintes:

- As vogais nasais eram representadas tanto por aposição de /m/ ou /n/ como por emprego de /~/ sobre a vogal anasalada. Exemplos: /mãdou/=/mandou/, /gẽte/=/gente/, /cõtra/=/contra/, /nenhũs/=/nenhuns/;

- A posição final do ditongo nasal /am//ão/ não indica necessariamente a sílaba tónica;

- O /v/ intermédio aparece geralmente grafado /u/. Ex.: /leuauam/=/levavam/, /ouuindo/=/ouvindo/;

- O /u/ inicial aparece grafado /v/. Exemplo /vnião/=/união/, /vso/=/uso/;

- Outros:
 /Iesu/=/Jesus/, /has/=/as/, /hos/=/os/, /hũ/=/um/, /hũa/=/uma/, /quomo/=/como/, /poer/=/pôr/. /feo/=/feio/, /meo/=/meio/.



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