É razoável supor que José Sócrates e Ricardo Salgado pensavam o mesmo até há pouco tempo.
Mas há quem pense que as voltas que dão volta à fortuna não são as voltas do mundo sobre si mesmo, são outras.
E a fortuna não se restringe a dinheiro acumulado; pode ser a boa saúde, um casamento feliz, a proximidade de entes queridos, o reconhecimento dos outros.
Por mera cautela, seria bom que todos, incluindo os Sócrates e os Salgados desta vida, aqui e ali lessem ou relembrassem alguns versos de dois poemas do "Carmina Burana".
(Fonte da imagem)
O primeiro e mais famoso é o "O Fortuna", que transcrevo abaixo traduzido para Português; a tradução é do poeta Fernando Nandé, e está feita verso a verso, ao contrário do que geralmente acontece nas traduções disponíveis.
O Fortuna, - Ó Fortuna,
velut luna - és como a lua
statu variabilis, - mutável,
semper crescis - sempre aumentas
aut decrescis; - ou diminuis.
vita detestabilis - A detestável vida
nunc obdurat - ora oprime
et tunc curat - e ora cura
ludo mentis aciem, - para brincar com a mente.
egestatem, - Miséria,
potestatem -poder,
dissolvit ut glaciem. - ela os funde como gelo.
Sors immanis - Sorte monstruosa
et inanis, - e vazia,
rota tu volubilis - tu, roda volúvel,
status malus, - és má.
vana salus - Vã é a felicidade
semper dissolubilis, - sempre dissolúvel,
obumbrata - nebulosa
et velata - e velada
michi quoque niteris; - também a mim contagias.
nunc per ludum - Agora por brincadeira
dorsum nudum - o dorso nu
fero tui sceleris. - entrego à tua perversidade.
Sors salutis - A sorte na saúde
et virtutis - e virtude
michi nunc contraria - agora me é contrária.
est affectus - Dá
et defectus - e tira
semper in angaria. - mantendo sempre escravizado.
hac in hora - Nesta hora
sine mora - sem demora
cordum pulsum tangite; - tange a corda vibrante;
quod per sortem - Porque a sorte
sternit fortem - abate o forte,
mecum omnes plangite! - chorai todos comigo!
"O Fortuna" é a canção mais popular da ópera de Orff e a interpretação mais visualizada no youtube é esta.
Quem quiser experimentar o latim, pode acompanhar a música e os cantores lento o original transcrito acima. É mais fácil do que parece.
O segundo poema é o "Fortune plango vulnera".
Neste link, a canção está legendada com o texto original e a tradução para Inglês.
Duas notas sobre os dois últimos versos do "Fortune plango vulnera":
"nam sub axe legimus" ("porque sob o eixo está escrito")
A palavra latina "axe" aparece traduzida por "axis" (eixo) no vídeo e nas outras traduções deste poema disponíveis na internet. No entanto, "axe" é também sinónimo de placa, tábua, letreiro. o que parece corresponder melhor ao propósito de referir que junto ao trono do rei está uma inscrição (ver http://en.wiktionary.org/wiki/axis#Latin).
"Hecubam reginam" ("Rainha Hecuba", a inscrição junto ao trono)
Hecuba, rainha afligida e infeliz, várias vezes referida na mitologia grega.
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O "Carmina Burana" foi escrito no século 13 supostamente por monges decaídos, mas a obra só foi descoberta no século 19, na abadia de Benediktbeuern, Baviera.
O livro contém 250 poemas profanos, na maior parte escritos em latim, outros em francês e alemão antigos. Os poemas, na sua generalidade, saúdam a primavera, a atração sexual juvenil, as festividades, a bebida. E apesar disso, os poemas mais notáveis do Carmina Burana são os poucos que falam sobre os caprichos da sorte.
De tal modo que, quando em 1936 Carl Orff selecionou vinte e quatro poemas do Carmina Burana para a partir deles compor a ópera a que deu essa mesma designação, escolheu para a abertura duas canções que, no seu conjunto, receberam o título "Fortuna, Imperatix Mundi" (Fortuna, imperatriz do Mundo)
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Ligações com interesse.
Para saber mais sobre o Carmina Burana:
http://www.oocities.org/theyuks/carmina.html
Encenação da ópera Carmina Burana para TV, legendado em Português; ZDF, 1975 (em 10 partes):
https://www.youtube.com/watch?v=HDekwfpZcug&list=PLF05C393E1B4CB5C0
Outras produções para cinema e televisão
http://www.imdb.com/find?ref_=nv_sr_fn&q=carmina+burana&s=all
Texto original e tradução para inglês dos vinte e quatro poemas incluídos na ópera de Orff:
http://chorus.ucdavis.edu/carmina/Carmina%20Burana%20translation.pdf
Texto integral da obra medieval, em latim, francês antigo e alemão antigo.
http://www.hs-augsburg.de/~harsch/Chronologia/Lspost13/CarminaBurana/bur_car0.html
Poema de Fernando Nandé sobre os monges decaídos da Idade Média - os goliardos - que se presume escreveram o Carmina Burana (página já linkada acima).
http://auladelatim.blogspot.pt/2013/10/vida-errabunda-somos-os-goliardos.html
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